terça-feira, 28 de agosto de 2012

Metamorfose ambulante

No fim de 2008, o paleontologista Wolfgang Haak, da Universidade de Adelaide, na Austrália, apresentou ao mundo uma prova que a diversidade dos modelos familiares pode ser mais antiga do que se imagina. Em um cemitério pré-histórico do Período Neolítico (Idade da Pedra), na região de Eulau, na Alemanha, Haak e sua equipe encontraram, em uma tumba, quatro esqueletos que, submetidos a testes laboratoriais (inclusive de DNA), revelaram ter 4.600 anos e um estreito grau de parentesco: eram mãe, pai e dois filhos. Após uma aparente morte violenta, os corpos foram sepultados juntos e de forma cuidadosa. No túmulo, a mulher abraça o filho mais novo e, ao lado dela, o pai tem nos braços o mais velho. Mas as descobertas foram mais longe...

Também foram encontrados outros três grupos de adultos e crianças enterrados juntos, face a face, numa posição que espelharia um relacionamento afetivo existente em vida. Tudo indica que esses grupos também constituíam algum tipo de composição familiar, mesmo que formado por pessoas sem uma ligação biológica, pois os estudos de DNA não conseguiram demarcar esse vínculo. As constatações desses achados: “Ao estabelecer elos genéticos entre adultos e crianças enterrados juntos, determinamos a presença de uma clássica família nuclear num contexto pré-histórico. Sua unidade na morte sugere uma unidade em vida. Mas não necessariamente estabelece a família nuclear como um modelo universal ou a mais antiga instituição das comunidades”, afirmou Wolfgang Haak.

Transformações – Tanto ontem como hoje parece não ter existido um modelo de família que possa ser visto como universal. Os grupos familiares, na verdade, se adaptam às condições econômicas, políticas, sociais, culturais, ambientais e mesmo de sobrevivência dos meios onde vivem. Os deslocamentos populacionais, as guerras, as catástrofes naturais, as transformações dos meios de produção, as revoluções industrial, dos costumes e da informática; a influência cultural ou religiosa de nações hegemônicas sobre as demais, o expansionismo colonial; a carestia, as depressões ou os períodos de prosperidade; a popularização de métodos anticoncepcionais, a emancipação feminina (com o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho) e a tomada de consciência das minorias sexuais são apenas alguns fatores que ajudam a entender, no tempo e no espaço, as diferentes composições de família e suas transformações.


Nada, aliás, que tenha começado ontem – como ficou bem claro com as famílias do cemitério de Eulau – ou que seja novo para os brasileiros. Quando alguns de nossos antepassados, por exemplo, as mulheres, se casavam com 15 ou 16 anos e logo começavam a gerar os filhos, era natural que assim fosse. As grandes famílias eram necessárias para abastecer a necessidade de mão de obra na lavoura ou na indústria. E porque, também, nem todos os filhos “vingavam”. Basta lembrar que a mortalidade infantil, no País, era de 163,4 por mil em 1940 e passou para 21,17 por mil em 2011. E que não por coincidência, em semelhante proporção, caiu a taxa de fecundidade da mulher brasileira: 6,2 filhos em 1940 e 1,8 filho em 2009. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a média de pessoas por família, em 1981, era de 4,3, e chegou a 3,3 em 2001. As famílias diminuem também por uma imposição cultural: em 1994, a pesquisadora Anamaria Fadul, da Universidade Metodista de São Paulo (SP), montou a genealogia de 33 novelas produzidas pela Rede Globo entre os anos 1970 e 1990 e o resultado foi que apenas duas mostravam famílias com mais de dois filhos.

Estrutura – Consequentemente, novas configurações familiares vão se formando... Conforme o IBGE, o modelo de família nuclear ou “tradicional”, formada por casal com filhos, caiu de 59,4% dos entrevistados em 1992 para 52,8% em 2002. No mesmo período, as famílias formadas por mulheres sem cônjuge pulou de 15,1% para 17,9%. Em 2009, segundo investigações do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o índice de famílias brasileiras chefiadas por mulheres subiu de 27% para 35%. Em números absolutos, o Brasil tem mais de 22 milhões de famílias em que a chefia é exercida por uma mulher. Uma delas é a da pedagoga Júlia Ribeiro, de 51 anos, que mora com o filho estudante, Frederico Ribeiro, de 27 anos, em um conjunto habitacional popular da Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo (SP). “Não sei se existe um modelo de família que possa ser chamado de ideal nem sei se a minha família, como podem entender alguns, é desestruturada. Cada um constrói, para si, o tipo de família que considera ideal” – garante.

Hoje, de fato, a estrutura de uma família está menos associada ao seu aspecto formal do que à sua funcionalidade e às condições de vida que oferece a seus integrantes. “Mesmo não sendo do tipo tradicional, ou formada por esposo, esposa e filho, uma família pode ser bem estruturada, desde que tenha condições de educar e formar seus membros como pessoas humanamente saudáveis”, confirma o sacerdote, psicólogo e terapeuta familiar Elísio Mello, para quem, sobretudo, família estruturada é a que vive dentro de padrões aceitáveis de dignidade, com boas condições de moradia, alimentação, educação, trabalho e, claro, valores. “Ela proporciona aos filhos uma educação baseada no amor, onde os afetos são respeitados, onde há troca de carinho e cumplicidade, com limites de liberdade e respeito, educando-os para as responsabilidades. Na verdade, a estrutura de uma família depende, essencialmente, da estrutura dos seus organizadores” – sentencia.

Amor – Independentemente de seu formato, o certo é que a família é uma entidade que precisa ser protegida, pois sem ela não haveria nação, sociedade, país e, talvez, sequer humanidade. “A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado”, garante o artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem. “Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar”, reafirma o artigo 25 do mesmo documento. Pois com base na universalidade desses preceitos, há exatamente um ano, em maio de 2011, o STF (Supremo Tribunal Federal), também reconheceu, por unanimidade, os direitos das famílias constituídas por casais do mesmo sexo. “Entendo que uniões de pessoas do mesmo sexo, que se projetam no tempo e ostentam a marca da publicidade, devem ser reconhecidas pelo direito, pois dos fatos nasce o direito. Creio que se está diante de outra unidade familiar distinta das que caracterizam uniões estáveis heterossexuais”, afirmou, ao votar, o ministro e relator Ricardo Lewandowski.

A medida foi um alento para, pelo menos, 60 mil casais (de acordo com o Censo Demográfico de 2010), que poderão ter assegurados direitos como herança, comunhão parcial de bens, pensão alimentícia e previdenciária, licença médica e inclusão do companheiro como dependente em planos de saúde, entre outros benefícios. “Não vejo motivo para, a essa altura do jogo, os casais homoafetivos brasileiros não terem os mesmos direitos dos outros, como ocorre em outros países”, afirma o sacerdote e escritor inglês James Allison, doutor em Teologia Sistemática pelas Faculdades Jesuítas de Belo Horizonte (MG) e um dos articuladores da Pastoral da Diversidade, um movimento independente formado por gays que afirmam amar a Igreja Católica e não ter a pretensão de reivindicar direitos, a não ser o de amar. “O amor entre duas pessoas é sempre um reflexo do amor divino, pois a origem do amor é Deus. Sei que vivemos um novo modelo familiar” – interpreta o educador Luiz Ramires, 51 anos, membro da Pastoral.

Hierarquia – Entre a jurisprudência alcançada no STF e a regulamentação da união civil entre pessoas do mesmo sexo há, no entanto, um espaço a ser vencido. O projeto de Lei 580/07, que permite essa união, aguarda parecer da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados de Brasília (DF) há quatro anos e ainda não tem prazo para ser discutida e muito menos votada, segundo o deputado Luiz Henrique Mandetta, presidente da Comissão. “Teremos que começar pelos pontos em que é possível algum acordo. Acredito que seja possível discutir questões de família ligadas à Previdência Social. Vamos usar o bom senso para elaborar nossa pauta”, avalia o deputado, para quem as questões religiosas não poderão ser desprezadas. “No caso, especificamente, da adoção de crianças por casais homossexuais, sou contra pela dificuldade de avaliar o impacto dessa condição na vida de uma criança” – diz o parlamentar do Partido dos Democratas.

O padre Wladimir Porreca, filósofo, teólogo, psicólogo e, atualmente, assessor da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), reafirma: “Em meus estudos e em outros, constatei que o ideal para que uma criança cresça e se desenvolva é um ambiente seguro e saudável, composto de um pai e uma mãe”. Para a Igreja, ou mais exatamente sua hierarquia, o fato de o Estado vir, um dia, a legalizar formalmente a união civil homoafetiva e reconhecer os direitos desse modelo familiar não implica em uma mesma visão no campo do catolicismo institucional. “Partindo do pressuposto antropológico de que família é a relação de um homem, uma mulher e seus filhos, cada família, nas suas diversas estruturas e dinâmica, deve ser vista no seu contexto e peculiaridade. Assim, as políticas públicas devem assistir as famílias na realidade em que estão inseridas. Já a Igreja deve ajudar, formular e reformular, bem como, desafiar os órgãos responsáveis pelo bem comum, nas políticas públicas familiares”, sentencia o porta-voz da CNBB.


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